Pseudo SIMPLEX Ambiental: desresponsabilizar sem desburocratiza
MANIFESTO
PSEUDO SIMPLEX AMBIENTAL: desresponsabilizar sem desburocratizar
A crise ecológica está a colocar em risco a civilização tal como a conhecemos. Os relatórios do IPCC1 e do IPBES2 não deixam dúvidas sobre a gravidade alarmante das alterações climáticas e da consequente perda de diversidade e que as mesmas tenderão a agravar-se nos próximos anos.
Em contraciclo com a necessidade urgente de acautelar os valores ambientais, sentida à escala planetária, em Portugal, o Governo aprovou o SIMPLEX Ambiental3, um diploma legal cujo objetivo, legítimo, de simplificação dos procedimentos administrativos para obtenção de autorizações e licenças ambientais, é feito à custa de medidas que prejudicam a sua qualidade e, portanto, podem comprometer o Ambiente em Portugal. Em vigor, e com efeito desde março de 2023, este diploma configura um retrocesso de décadas, fazendo tábua rasa dos valores fundamentais que a política ambiental e o instrumento da avaliação de impacte ambiental visam proteger, desrespeitando a legislação nacional e europeia nesta matéria4 e violando o Direito Comunitário e Internacional. Ao adotar o SIMPLEX Ambiental, o Governo está a incumprir os seus compromissos internacionais, nomeadamente a Convenção de Aarhus5 sobre o acesso à informação, participação do público nos processos de tomada de decisão e acesso à justiça em matéria de ambiente.
As entidades abaixo assinadas recusam com veemência o (pseudo-)SIMPLEX Ambiental, em cuja lógica o ambiente é encarado apenas como um entrave à economia.
Consideramos que o presente diploma, embora contendo alguns aspetos positivos, em nada resolve os problemas estruturais que prejudicam processos mais céleres e transparentes, limitando-se a encurtar excessivamente prazos e a excluir avaliações, ou eliminar processos de verificação, sem fundamento científico adequado, ou sem a necessária ponderação de todos os interesses e perigos em causa. Mais do que reduzir a burocracia, promove a desresponsabilização face ao interesse coletivo, à proteção da natureza, à biodiversidade, à participação dos cidadãos e a um desenvolvimento sustentável.
As organizações abaixo assinadas desconhecem alguma listagem exaustiva dos documentos, ou procedimentos duplicados e/ou desnecessários, ou que tenham sido identificadas as situações de falta de articulação/comunicação entre serviços, que deveria ser o fundamento deste diploma.
De entre os aspetos absolutamente inaceitáveis, destacamos os seguintes:
- Redução da obrigatoriedade de efetuar Avaliações de Impacte Ambiental (AIA) e de haver participação pública na tomada de decisão: fora de áreas sensíveis, ficam excluídos da análise caso a caso alguns projetos de piscicultura intensiva e projetos industriais, contemplando instalações da indústria do papel, da alimentação, dos têxteis, dos curtumes, da madeira, da borracha e muitos outros.
- São particularmente graves as disposições relativas à aplicação do procedimento de AIA ao desenvolvimento de novas grandes centrais solares fotovoltaicas, deixando de ser obrigatório para projetos quando a área ocupada seja igual ou inferior a 100 ha. Esta isenção de AIA ignora os impactes ambientais negativos cumulativos destas centrais solares, e os direitos das populações afetadas que se têm oposto a vários destes projetos. As associações ambientalistas têm alertado que a proliferação de centrais solares está a acontecer sem estratégia de localização, controlo ou restrições.
- Aumento dos limiares para a realização de AIA, por exemplo a diminuição do controle e redução de resíduos perigosos: a passagem de 100 para 1.000 ton por ano a partir do qual é obrigatória a realização de um plano de minimização da produção de resíduos perigosos é de um laxismo que não tem qualquer justificação e colide com os objetivos de prevenção da produção de resíduos, constituindo um grave risco para a saúde pública e para o ambiente.
- Recurso ao deferimento tácito (ou seja, aprovação automática) e revisão das normas para a obtenção de licença prévia, sem permitir uma adequada ponderação de todos os interesses em jogo, podendo viabilizar projetos que não cumpram exigências ambientais mínimas. O deferimento tácito nas legislações europeias é o último recurso. O SIMPLEX propõe a redução dos prazos de resposta para apenas 10 dias, sendo que as entidades competentes apenas podem solicitar esclarecimentos uma única vez. Este curto prazo antes da aprovação tácita representa um desinvestimento no serviço público, limitando a participação destas entidades, que têm escassos recursos para responder a todas as exigências.
- Desvalorização da participação de entidades e verificadores nos procedimentos ambientais, tornando facultativa a verificação por uma terceira parte, o que poderá favorecer a vulnerabilidade à corrupção. A justificação apresentada é que “a utilização de entidades acreditadas significa um custo para as empresas”. A questão crucial que se coloca é quem pagará o custo de processos não verificados de forma independente? E a resposta é óbvia: seremos todos nós, gerações presentes e futuras.
- Automatização da revalidação de licenças ambientais ao fim de 10 anos, reduzindo-a a um ato burocrático. Em 10 anos muito evolui em termos tecnológicos, o que demonstra a desadequação e o desconhecimento relativo à modernização e dinâmica das respostas científicas e tecnológicas para a sustentabilidade e os interesses do país a médio e longo prazo, bem como o efeito cumulativo da carga ambiental das atividades.
- Redução do controlo de efluentes, por exemplo ao emitir licenças para pecuária intensiva mesmo a suiniculturas sem plano de gestão de efluentes.
- Fraca agilização na utilização de águas residuais: por um lado, a utilização para uso próprio apenas necessita de comunicação prévia (podendo dar azo a potenciais riscos para a saúde pública), enquanto a utilização fora dos locais de produção mantém a obrigatoriedade de licença. Face ao agravamento das situações de seca, seria desejável facilitar a utilização de águas residuais tratadas na rega. Relembre-se que a atual taxa de reutilização de águas residuais tratadas é de 1,2%, sendo que o Governo declara que quer chegar a uma meta de 20% em 2030.
- Aumento da vulnerabilidade dos recursos hídricos, permitindo o uso abusivo de água no espaço urbano (por exemplo, de um rio que atravesse zona urbana), substituindo a licença por uma comunicação prévia, o que não dá tempo às entidades competentes para se pronunciarem e não dá margem para mudança/diminuição de uso.
Além disso, este Decreto-Lei não acrescenta mecanismos de monitorização e plataformas/ferramentas que permitam aos cidadãos aceder a informação sobre os processos de licenciamento de projetos (públicos e privados), nem avaliar os impactes ambientais e em particular os impactes cumulativos.
Esta tentativa de agilizar licenças e procedimentos e de encurtar prazos administrativos elimina os incentivos ao desenvolvimento de bons projetos que minimizem os impactes ambientais, sem de facto reduzir significativamente a demora dos processos. A AIA é uma ferramenta importante, e única, para ponderar os impactes ambientais de um projeto na sua fase preliminar e, consequentemente, melhorar a sua conceção e definir medidas de mitigação. A resposta a dificuldades e atrasos administrativos não deve ser a eliminação desta etapa essencial mas sim o reforço dos recursos, sejam humanos, técnicos ou financeiros, alocados às várias entidades responsáveis. Adicionalmente, a AIA é um momento privilegiado para a participação pública, procurando mais transparência na tomada de decisões e mais aceitação social na implementação dos projetos. O (pseudo-)SIMPLEX Ambiental retira aos cidadãos e partes interessadas a possibilidade de participarem do processo decisório, algo que se assume, desde há decénios em países democráticos, como a base das práticas de boa governança.
O (pseudo-)SIMPLEX Ambiental compromete o princípio da precaução e da participação e, consequentemente, a salvaguarda do interesse comum e da integridade ecológica para as gerações futuras.
Não podemos aceitar que os interesses económicos presentes vigorem à custa do futuro da Biodiversidade, das Comunidades e do Planeta. Apelamos à revogação deste Decreto-Lei!
25 de setembro de 2023
________________________________________
SUBSCRITORES (lista atualizada a 20 de novembro de 2023)
Arméria - Movimento Ambientalista de Peniche
AAMDA - Associação dos Amigos do Mindelo pela Defesa do Ambiente
AP - Associação dos Proprietários da Urbanização Vila D Este IPSS
ASE - Associação Cultural Amigos da Serra da Estrela
Associação Famalicão em Transição
Associação Natureza Portugal, em associação com a WWF
BioPorto - Grupo de Acção Ambiental
Campo Aberto Associação de Defesa do Ambiente
Climáximo
FAPAS - Associação Portuguesa para a Conservação da Biodiversidade
GEOTA - Grupo de Estudos do Ordenamento do Território e Ambiente
OnGaia - Associação de Defesa do Ambiente
Palombar - Conservação da Natureza e do Património Rural
PAS – Plataforma Água Sustentável, constituída por:
A Rocha Portugal
Água é Vida
Al-Bio - Associação Agroecológica do Algarve
Almargem - Associação de Defesa do Património Cultural e Ambiental do Algarve
CIVIS - Associação para o Aprofundamento da Cidadania
Dunas Livres
Ecotopia Ativa - Associação Ambiental e de Desenvolvimento Sustentável
FALA - Fórum do Ambiente do Litoral Alentejano
Faro 1540 - Associação de Defesa e Promoção do Património Ambiental e Cultural de Faro
Glocal Faro
LPN - Liga para a Protecção da Natureza
Probaal - Associação para o Barrocal Algarvio
Quercus - Associação Nacional de Conservação da Natureza
REGAR
Regenerarte - Associação de Proteção e Regeneração dos Ecossistemas.
proTEJO - Movimento Pelo Tejo
Sciaena
SPEA - Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves
SPECO - Sociedade Portuguesa de Ecologia
ZERO - Associação Sistema Terrestre Sustentável
[1] The Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC): https://www.ipcc.ch/
[1] Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services (IPBES) - https://www.ipbes.net/about
[1] Decreto-Lei nº. 11/2023, de 10 de fevereiro. Procede à reforma e simplificação dos licenciamentos ambientais. https://dre.pt/dre/detalhe/decreto-lei/11-2023-207272800
[1] Decreto-Lei n.º 151-B/2013, de 31 de outubro, e Diretiva 2011/92/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de dezembro
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