Renascer das cinzas, sem esquecer o inferno
A Associação Almargem lamenta profundamente os avultados prejuízos em termos pessoais, em recursos florestais e em perda de biodiversidade que os incêndios este Verão, mais uma vez, têm vindo a provocar, nomeadamente em Tavira, em Castro Marim, na Mata do Pontal, na Serra de Monchique e na Serra do Caldeirão.
Apresentamos também a nossa homenagem a todos aqueles, bombeiros ou simples cidadãos, que, apesar das enormes dificuldades, combateram as chamas no terreno com o perigo da própria vida.
Falta de meios e incompetência
No caso da Mata do Pontal, mais 200 hectares de pinhal foram consumidos pelas chamas, apesar do aparentemente sofisticado sistema de vigilância montado pelas autoridades locais. Tudo aponta, mais uma vez, para uma origem criminosa do incêndio numa zona de grandes apetites imobiliários e turísticos, mas que constitui o único pulmão verde da cidade de Faro e um dos poucos espaços florestais da Ria Formosa.
Relativamente à Serra de Monchique, não se entende como é possível, após a catástrofe de 2003, não terem sido instalados, nas poucas áreas que se mantinham intactas, dispositivos reforçados de vigilância, prevenção, segurança e intervenção rápida, de modo a evitar que mais 2 mil hectares de floresta tivessem sido engolidos pelo fogo, a acrescentar aos 60 mil hectares do ano passado.
Quanto à tragédia da Serra do Caldeirão, ela deve-se essencialmente a uma avaliação incorrecta da situação no terreno por parte das chefias da protecção civil, uma vez que, em mais de uma ocasião, o incêndio poderia ter sido controlado caso tivessem sido empregues os meios adequados. Na verdade, o incêndio, que começou no concelho de Almodôvar, ultrapassou sucessivamente diversas vias rodoviárias e barreiras geográficas importantes, sem que, na maior parte dos casos, aí tivesse sido montada uma estratégia, mínima que fosse, de ataque e tentativa de circunscrição do incêndio. A completa ausência de bombeiros fez-se também aqui sentir de forma inexplicável em muitos locais e ocasiões, sobretudo quando as chamas ameaçaram e cercaram dezenas de montes e aldeias, como por exemplo no Malhão ou na Cortelha. Neste último caso, os habitantes desta e de outras povoações vizinhas viram-se obrigados a combater o fogo sozinhos quando, mesmo ali ao lado, uma coluna com dezenas de viaturas de bombeiros, todas oriundas do norte do país, montava um cordão de segurança em torno do Aterro Sanitário do Sotavento. Não se entende, nem se pode aceitar porque não foram ao mesmo tempo mobilizados outros meios, se não já para combater a frente de fogo, pelo menos para proteger, de igual modo, as populações em perigo.
Tal como aconteceu em 2003, não se pôde ou não se achou necessário proceder a um ataque imediato e com todos meios disponíveis dos incêndios florestais na sua fase inicial. “Deixa arder que é mato” é uma atitude que, normalmente, não dá bons resultados. Efectivamente, o terreno montanhoso, o tipo de coberto vegetal existente e as condições climatéricas desfavoráveis, tornam estes incêndios rapidamente incontroláveis. No incêndio da Serra do Caldeirão, durante o primeiro dia, os meios
aéreos não intervieram e no terreno estariam pouco mais de 50 homens. Daí que o fogo rapidamente tivesse atingido zonas mais densamente povoadas da Beira Serra, onde, no segundo dia, a maior parte dos meios passou obviamente a estar concentrada. Ao mesmo tempo, as chamas lavravam já sem controlo pela serra afora, ameaçando e infelizmente vindo a destruir inúmeras povoações e o principal núcleo de montado de sobro do Algarve.
Desculpas e falsas culpas
O Governo e a coordenação da protecção civil atribuem em geral as culpas destes incêndios à vaga de calor e à falta de acessos. Quanto à influência do aumento da temperatura e consequente diminuição da humidade do ar e do solo sobre a proliferação dos incêndios florestais, ninguém tem a menor dúvida. Mas essa é uma das características do clima que temos, com ela temos de conviver e deveria estar sempre na base de todos os planos de fomento florestal e de todas as estratégias nacionais e regionais de prevenção dos incêndios. No que respeita a falta de acessos, se em determinadas zonas ela é uma realidade incontornável, também é um facto que nunca como nos últimos anos se tem investido tanto em limpeza e abertura de caminhos e aceiros florestais. A questão aqui é saber para o que servem estes dispositivos se no terreno não estiver instalado um esquema de prevenção e ataque precoce aos focos de incêndio, baseado em equipas móveis de voluntários e sapadores florestais devidamente equipados, secundados no mais curto espaço de tempo possível, por outros meios adequados de combate, terrestres e aéreos.
Para as populações rurais – as principais vítimas destas tragédias – a culpa dos incêndios é dos “senhores do ambiente” que não deixam limpar as matas e abrir corta-fogos sobretudo em zonas naturais mais sensíveis. Se esta crítica se pode aplicar correctamente em casos de alegado zelo excessivo ou mesmo autismo burocrático de alguns serviços (ICN, Direcção Regional de Ambiente, Serviços Florestais), o certo é que este argumento tem vindo, nos últimos anos, a ser fomentado e avolumado artificialmente de forma intolerável por muitos responsáveis e caciques locais, que assim tentam arranjar um bode expiatório fácil e desviar as atenções para longe de eventuais responsabilidades que sobre eles próprios poderão recair.
A Associação Almargem gostaria de ser clara neste aspecto. Dizer que as matas ardem porque os “verdes” não as deixam limpar é não querer ir ao fundo da questão. Existiram no Algarve, nestes últimos anos, alguns conflitos entre proprietários e autoridades ambientais, em torno de cortes de arvoredo e mato, que levaram mesmo à ameaça com multas e coimas. Na maior parte dos casos, porém, essa disputa teve a ver com a falta de informação adequada e ausência de um código de boas práticas agrícolas, para além de casos pontuais envolvendo posições demasiado exacerbadas por parte dos donos dos terrenos e atitudes completamente desajustadas da realidade rural por parte dos responsáveis oficiais implicados. Na esmagadora maioria das situações, se os terrenos não são limpos é porque os seus proprietários não se interessam por isso, não têm já idade ou dinheiro para se empenharem nessas tarefas, não conseguem ou não querem agrupar-se em associações de produtores florestais que, entre outras coisas, permitem disponibilizar e racionalizar meios. E, sobretudo, é preciso reconhecer que, quando a insuficiência de meios no terreno e a ausência de uma estratégia eficaz de combate, deixam a situação chegar ao ponto a que chegou, este ano, o incêndio da Serra do Caldeirão, não há limpeza de matos que nos salve da desgraça.
Na sequência de uma política de fomento florestal profundamente errada, de um desinvestimento crescente na prevenção e na vigilância, das negociatas obscuras em torno da aquisição ou aluguer de meios de combate, da falta de formação dos bombeiros
e da incompetência de muitas das chefias da protecção civil, chegou-se este ano no Algarve ao culminar de um processo lamentável que leva a que o distrito de Faro seja já o que ostenta em 2004 a maior área ardida de todo o nosso país (cerca de 45 mil hectares).
Muito para fazer
A Associação Almargem gostaria de poder acreditar em todas as boas palavras, grandes planos e vastas promessas que este ano, tal como em 2003, os responsáveis políticos não deixarão de apresentar perante a opinião pública. Infelizmente, os factos obrigam-nos a tentar perceber se não haverá algo mais a fazer do que esperar que os esquemas oficiais de prevenção dos incêndios possam realmente funcionar no que resta deste Verão de 2004 e em 2005. Decidimos assim congregar os nossos esforços em torno de três linhas de acção fundamentais:
1.Propor à Universidade do Algarve a elaboração (em conjunto com outros representantes da sociedade civil) de um estudo e uma avaliação, rigorosamente independentes dos poderes públicos, sobre a problemática dos fogos florestais na região algarvia: causas, impactos (ecológicos, económicos e sociais), formas de prevenção e combate utilizadas, métodos mais adequados para evitar novas catástrofes.
2.Promover uma pressão firme sobre os orgãos de poder com o objectivo de conseguir que os representantes da sociedade civil (produtores florestais, associações de desenvolvimento local, organizações ecologistas, grupos de cidadãos) possam fazer parte dos centros de decisão regional e municipal em termos de prevenção de fogos florestais, único meio de controlar vícios, incompetências e interesses instalados neste sector.
3.Lançar uma campanha plurianual de sensibilização e educação cívica para a realidade florestal, que envolva não só acções pedagógicas e informativas, mas também campanhas complementares de vigilância durante a época de fogos.
Loulé, 30 de Julho de 2004
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