Projectos - Algarve
Portugal é muitas vezes referido como sendo um país onde o quadro legislativo, no que concerne ao ordenamento, é dos mais extensos e complexos. No entanto, este facto, que em si deveria ser entendido como uma vitória da democracia, é muitas vezes acusado de pernicioso e mesmo perverso. Durante muito tempo a quase total ausência de corpo legislativo sobre ordenamento prestou-se por vezes ao cometimento de erros, que hoje são entendidos como verdadeiros atentados ambientais, mas dos quais muitos perduram ainda.
Nas últimas décadas, Portugal muniu-se porém de um vasto quadro legal que per si seria mais que suficiente para ordenar o seu território. Nada mais errado. Paradoxalmente, o erguer das bases do edifício legislativo de ordenamento foi acompanhado de decisões políticas e administrativas muitas vezes contraditórias com aquele e que viriam a marcar indelevelmente a nossa paisagem dos dias de hoje. Tome-se como exemplo a Reserva Ecológica Nacional, figura primeira e marco do nosso quadro legislativo, mas a qual seria vezes sem conta, ora deturpada, ora ajustada para permitir o "desenvolvimento", ao arrepio da sustentação técnica em que se baseou a lei. Não se estranhe pois que apesar do extenso rol legislativo (PROT, PMOT, PDM...), nas últimas décadas o nosso país tenha sido vítima dos mais variados atentados ao ordenamento, num cenário que em última análise pode hoje ser descrito como de verdadeiro desordenamento.
O Algarve é disso o exemplo máximo.
Caracterizado pelo seu carácter rural, a região sofreu uma completa transformação com a "chegada" do fenómeno turístico, a todos os níveis. Pressionada por uma indústria poderosíssima e ávida, alimentada pela incúria de uns, a indiferença de outros, e a ganância de muitos, em quatro décadas a região sucumbiu, e permitiu-se desfigurar por completo, hipotecando o seu maior activo – a sua paisagem única e irrepetível. Rendida à ilusão de um crescimento rápido, e assente unicamente numa actividade – o turismo - sob a promessa de um desenvolvimento fácil, comprometeu já um desenvolvimento que poderia ter sido sustentado, e que sob o peso das opções, pouco mais deixará às gerações vindouras do que um território caótico, a rebentar pelas costuras numa parte do ano, uma crescente crise de identidade, e muitas cicatrizes difíceis de sarar. E o que é mais perturbador é que os erros do passado são agora os do presente.
Em 1994, três mega projectos urbano-turísticos, há muito anunciados, e de grande impacte ambiental assumido, viram a situação de impasse em que se encontravam ser "resolvida" por mão de um despacho conjunto proferido por dois Ministérios que representavam então o Governo do Estado Português. O despacho de excepção permitia assim que os três projectos (Vilamoura XXI, Vale de Lobo III e Verdelago) fossem avalizados apesar de contrariarem as regras do ordenamento em vigor, nomeadamente o Plano Regional de Ordenamento do Território do Algarve (PROTAL), aprovado em 1991, mas também as Reservas Agrícola e Ecológica Nacionais. Era o reconhecimento (infeliz), por parte do Estado, de que afinal o ordenamento não era sempre para cumprir – um péssimo sinal, numa região, que até então, com a desculpa de falta de legislação tudo havia permitido. O expediente não haveria de ser utilizado mais nenhuma vez durante quase uma década.
Porém, em 2004, de novo um Governo haveria de desenterrar tão triste instrumento, agora sob a forma de "Projectos Estruturantes", coordenados e avalizados pelo designado CALPTE (Centro de Apoio ao Licenciamento de Projectos Turísticos Estruturantes), o qual visava facilitar a vida aos projectos que enfrentavam alguns impedimentos de ordenamento. O Algarve haveria de ser presenteado com mais de uma dezena de candidaturas. Algumas acabariam por avançar, outras não, tamanhas eram as condicionantes que atropelavam pelo caminho.
Em 2005, com novo Governo, foi criado o sucessor dos Projectos Estruturantes, o designado Sistema de Reconhecimento de Potencial Interesse Nacional (PIN), esquema que prometia então agilizar a análise e aprovação de projectos, promovendo a superação de bloqueios administrativos e garantindo uma resposta célere, nomeadamente em matéria de licenciamento.
Na verdade, os PINs vieram a revelar-se uma forma ardilosa do Estado permitir-se "desencravar" em definitivo aqueles projectos que há muito viam o seu desenvolvimento ser obstacularizado por várias entidades do próprio Estado, ignorando as razões que estavam por detrás desse "chumbo". Ao arrepio da legislação, e por vezes promovendo a utilização de figuras de excepção, o Estado parece assim estar a favorecer o interesse privado, em detrimento do superior interesse público, e em nome de um desenvolvimento nada sustentável, demitindo-se das suas obrigações, no que concerne a preservação do património natural, ao permitir a invasão dos únicos espaços naturais livres da região, não apenas no litoral, mas também em Áreas Protegidas e na Rede Natura 2000. Perfilam-se para o Algarve quase 50 novos empreendimentos urbano-turísticos, incluindo 17 campos de golfe.
Juntos, com os mais de cinco dezenas de outros projectos que estão previstos para o Algarve, nos próximos anos mais de 80.000 novas camas serão numa região que já dá sinais de saturação. Sob a máscara da qualidade, a região prepara-se assim para carregar com mais 160.000 habitantes sedentos, o que irá aumentar o consumo de água em mais de 40% para uso doméstico, e duplicar, para as mais de duas dezenas de campos de golfe previstos. A escalada parece imparável...
Perante os evidentes impactos desta estratégia de "desenvolvimento" à custa do betão (aumento do consumo de água, sobre-ocupação do litoral, destruição de recursos naturais), que as autoridades parecem querer ignorar, a Almargem não quer deixar de denunciar esta situação, que na prática constitui a hipoteca do que resta de valioso no Algarve em termos de espaços naturais de grande valor ecológico e paisagístico.